O treino amargo – Parte I

por Gustavo Ivo

Estava vasculhando alguns documentos pelo pc hoje e me deparei com esse texto. Ele foi escrito há alguns meses, lá por abril, creio, mas não o publiquei na época. Talvez por ter alguns receios das impressões que ele poderia causar, devido a já vários conflitos ideológicos ou de forma de encarar o parkour em que passava por aqui.

Hoje eu o encontrei, e não consegui segurar as lágrimas e arrepios.

Enfim, segue texto.

ps: Fiz uma ou outra alteração, revisão, mas basicamente continua da mesma forma que foi escrito na época.

ps²: Lembrei que ele pede uma continuação, a parte II, em que seria outra visão. Logo sai, quem sabe.


O treino amargo – Parte I

Esse título não condiz bem com o que quero dizer, mas foi uma forma de parecer menos agressivo. Talvez fosse mais coerente “o treino idiota” ou babaca ou irracional ou nem sei se seria treino. Vou tentar explicar abaixo o porquê.

Primeiro, não faça. Não recomendo a ninguém realizar algumas experiências do que vou falar. Entretanto acho importante levantar esse discurso, um discurso que é de difícil compreensão apenas por palavras, no qual a vivência e a experiência contam muito mais do que jamais conseguiria descrever.

Existe algo que aprendi dentro do parkour que é a cultura do esforço, do desafio, dos limites. Não só do esforço simples, mas de buscar rumos à completa exaustão física e psicológica. Um momento em que a própria noção de si mesmo começa a se desfragmentar. Fadiga muscular, cãibras, tonturas, dor de facão, vômitos, baixa pressão, noção espacial/sensorial conturbada, sangramentos, suor, tendinites pulsantes, dificuldade de respirar, desmaios; treinar em situações adversas: sem comer, sem beber, descalço, debaixo do sol forte ou chuva.

Chega ao ponto em que simplesmente o corpo não responde. Em que sua mente já gritou tanto que até já desistiu de reclamar. Dói. Muito. É frustrante. E a fraqueza bate forte. No corpo, na mente, no ego.

Passei por desafios de 1000 flexões, 1000 barras, 1000 planches, 1h na posição de apoio/ cadeirinha, quatro Hércules, rotinas exaustivas de caba machos/ pops/ air alert/ sallys/ tabatas/ corridas; treinos físicos de horas e horas. E também é preciso dizer; tive tendinites no joelho, cotovelo, ombro, bursite, entre outras lesões.

É difícil explicar pra alguém o porquê se colocar para treinar dessa forma, pois é uma mentalidade que visa construir outra coisa. Não é um treino que vai gerar necessariamente resultado positivo, você não vai ficar mais forte depois, seu desempenho talvez até piore e, de quebra, talvez você até tenha uma lesão. Fisicamente a intenção não é te dar nada de bom, nem na hora, nem depois. Na verdade, quanto pior/ idiota/sem sentido for, melhor. Não há “gain” nesse “pain”.

Vivenciar experiências mais extremas pode ser construtivo no sentido de que você vai puxar seus instintos, medos, receios, caráter, coragem e trazer sua personalidade à tona. Situações que vão cobrar uma posição, uma postura. Vão testar sua vontade, abalar suas verdades, certezas, seus motivos. E isso gera autoconhecimento, crescimento, mudanças. E vai polir seu espírito.

O treino não é feito para ser “concluído”, é importante entender que nesse treino e em tantas coisas da vida, nós não conseguiremos realizar de primeira tal atividade. E isso é natural. E não é motivo para pararmos. Almejar o horizonte. O caminho,  já diz, é uma jornada. Concluir é secundário.

É um “treino”, uma preparação para algo e, como tal, sempre que possível vai ressaltar o não conseguir, o tentar de novo, o polimento e, ao mesmo tempo, simular situações em que você não deveria desistir, porque há graves consequências se o fizer. Não existe o “ai, doeu, tá difícil, vou parar” quando alguém depende de você.

O treino não está nas repetições, nos obstáculos, no exterior. Ele está no interior. Não importa muito se você faz 10 ou 1000 flexões, mas sim em como você se desafia através delas que importa. Qual seu limite? Ou limitação? Essa barreira é um limite real? Estou dando de tudo? Isso é tudo que sou? A intenção era atingir algo lá de dentro e trazer à tona a raiva, a tristeza, as expectativas. Abalar tudo isso até que o que sobre seja apenas o que você é, aqui e agora.

– Cru, vulnerável, que sofre como todos os seres vivos, que luta, que entrega, que sobrevive, e vive. Humano.

A capacidade de se ater ao que é importante e essencial é acentuada nesses treinos. Não adianta se desesperar pelo futuro, mas focar no agora, em cada passo do quadrupedal, um de cada vez. Não importa quantos venham depois.

Os meus treinos não são os mais inteligentes para buscar a performance física, até porque me considero muito longe dessa palavra “força”. Mas quando suava, sangrava, calejava, ânsias de vômitos, pressão baixa,  tremedeira, cãibras, a mente clamando pra parar; eles acabaram brotando outros valores e princípios: o não desistir, persistir, resistir, tentar de novo, brutalidade, objetividade, disciplina e…humildade.

É 50% dor. 50% sacrifício. 100% espírito.

“Entre a força e a técnica, vence a técnica. Se a força e técnica forem iguais, vence o espírito”. Myamoto Musashi

“A força não provém de uma capacidade física, mas de uma vontade indomável.” Mahatma Gandhi

Até hoje não sei definir bem o que me guiava pra me testar assim. Primeiro veio da percepção que eu era muito, muito fraco. A fraqueza, a frustração de falhar foram motores que ligaram algo, um querer mudar. Havia um querer forte, uma retro alimentação e necessidade de que eu precisava me tornar forte. Eu sentia que precisava sentir que fui até meu máximo, pra dizer pra mim mesmo que eu não desisti de mim, que eu não dei meia volta, que eu senti um desconforto e fiquei no “até aqui já está bom”.

Eu fui arrastado por essa cultura. As pessoas ao meu lado não paravam no primeiro muro, elas não davam desculpas, elas não pediam justificativas, elas não queriam saber o que você já tinha feito hoje ou o que tinha pra fazer amanhã, a única coisa que importava era completar o que se havia proposto.

Elas se batiam contra o muro, elas falhavam, sofriam e continuavam. Elas não desistiam. Não desistiam de si. Não desistiam de quem estava do seu lado lutando também. Como não ser arrastado e não se apaixonar por isso? Como ficar parado quando tem alguém estourando os calos e ligando o foda-se “isso não vai me parar”? Como ficar parado quando aquele cara faz uma volta de quadrupedal suada, sofre na segunda, grita na terceira, chora na outra e silêncio na próxima. E não pára? Como desistir do climb porque o muro tá um pouco escorregadio quando tem alguém subindo com o cotovelo e queixo guiado pelo “eu vou subir nem que eu caia mil vezes.”. Ou quando depois de tudo isso, a pessoa vai fazer uma barra, e o corpo pára. Não responde. Não contrai minimamente. E a pessoa, vombat knows how, sobe.

Eu fui carregado por isso. Por pessoas brutas, diretas, sinceras, objetivas, e as que – do jeito delas – mais se preocupavam com o próximo.

Não tinham rodeios ou perfumes pra dizer pra mim o que eu precisava melhorar, ou do que estava fazendo errado. A frustração dos treinos aliada a essa sinceridade das pessoas era uma destruição do ego. Sim, você é fraco, você não conseguiu, você está cheio de desculpas. Plaw. ( E acompanhava um silencioso “mas isso não te faz inferior a ninguém e todos nós passamos por isso, todo dia.”) E me puxavam/ dificultavam minha vida ainda mais. Eles criavam dificuldades não pra me prejudicar, mas aprendi que é para me forçar a ser o melhor que eu posso ser.

E vinham aquelas situações em que “eu não vou sair da flexão/cadeirinha/etc até você acabar.” Plaw. Era aprender que eu fazia parte de algo, eu era responsável também por algo do outro. Eu vou sofrer junto com você, estamos juntos aqui. A independência que reconhecia a ligação, a conexão entre as pessoas. Isso é união.

Isso faz parte da cultura do Parkour. Muito mais do que qualquer contra ponto físico, essa cultura gerava pessoas fortes. Fortes pois, se faziam jus ao que falaram, suas ações andavam junto com as palavras; e, assim, são confiáveis. Pessoas que quando dizem: “Vou fazer isso. Venha. Pode deixar comigo”. Você pode confiar plenamente e se entregar. Ela está sendo sincera. Ou quando diz “eu preciso de ajuda nisso”, também. Aprendi a não mentir pra mim mesmo. A buscar a autonomia, porque é importante não depender sempre dos outros; mas que essa autonomia também é importante pro grupo.

Ser forte. Pelos outros. Ninguém é forte o tempo todo, é preciso ser forte sempre um pouco a mais (uma flexão, uma subida, um segundo a mais..), pelos momentos de fraqueza dos outros. E cada pequeno “um a mais” vai ser uma diferença lá na frente.

Aprendi que não adianta quantas palavras você diga, o muro vai continuar lá. Você vai continuar o mesmo. A mudança só vêm com ação. As mãos que me apareceram não foram as que me tiraram da inércia, às vezes é preciso levantar com as próprias pernas. Mas elas apareceram, seguraram-me, quando estava prestes a sucumbir e cair.

Vivenciar momentos amargos, em conjunto, construíram essas percepções e maturidade de senso de comunidade. Esses treinos, entretanto, ocorrem em dias solitários também.

Esse processo gera uma mentalidade que considero importante pra vida.

O treino amargo: Irreal. Impossível. Improvável.

É um caminho amargo. Mas.. “Não me arrependo de cada gota de suor, calo aberto, dores, fome, sede, fadiga…Nada.”

Um texto de agradecimento e homenagem a todos aqueles que fizeram e fazem parte desse caminho.

Aos que me incendiaram. E que essa chama queime nas gerações seguintes.


2 comentários sobre “O treino amargo – Parte I

  1. Digo parabéns a essa grande comunidade Brasileira e a todos os Traceurs que vem cada vez mais me deixando “Apavorado” pelas palavras, atitudes, enfim. Vou deixar uma reflexão aqui.
    Alguns dias atrás eu fiquei me perguntando porque o pai do David Belle fazia rotas em meio a galhos de proposito pra se machucar, e porque de fortalecer a mente…
    Fiquei pensando nisso, logo liguei meu pensamento em experiencias fortes, como visitas na africa e ver aquelas pessoas morrendo de fome.
    Quanto mais apanhar, quanto mais forte for, o resultado será interior, garanto que aparecera no exterior também.
    Acho que Raymond Belle fazia essas rotas que dizia pra fortalecer a mente, pra ficar mais frio, pra bater no interior e no exterior, pra alargar essa fraqueza do cotidiano Humano, que é as reclamações diárias, pensamentos fracos e mentes fracas.
    Esse treino seu, realmente interessante,muito interessante, um dia quero vivenciar umas dessas experiencias, estou seriamente precisando rsrs! Ótimo texto amigo, parabéns !

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  2. Sei q eu vou ser criticado, mas considero que desenvolver uma lesão para vencer um desafio que foi proposto pela própria pessoa ou por um grupo é um exagero. Acho q uma lesão, uma tendinite pulsante ou um desmaio é um sinal de que um desafio q provocou tudo isso deveria ser postergado para um momento em que o corpo estivesse mais preparado para vencer. O parkour tb não é adaptação? Não é “Ser é Durar”? Quem ganha uma lesão ou uma tendinite não dura.
    O texto em certa parte diz “Não adianta se desesperar pelo futuro, mas focar no agora […]“. Eu discordo veementemente disso por dois motivos. Um: isso vai diretamente contra um dos princípios básicos do parkour que é tão conhecido “Ser é Durar”. Quem tem lesão não dura!!! A não ser q se cure sa lesão.
    Dois: Uma reação do corpo como a de desmaios, vômitos, desorientação espacial ou qualquer outra coisa do gênero só mostra que a pessoa “ULTRAPASSOU” seu limite. Não aconselho e não concordo com esse tipo de agressão (ao meu ver) ao corpo. Vou argumentar em forma de pergunta: por que ultrapassar o limite em um treino agressivo se os limites podem ser alterados com treinos mais moderados? Se 1000 planches arrasam com o corpo, treinarei mais dias fazendo 600 planches. Depois, 700, 800… Depois, 1000.
    Mesmo q a mão abra, mesmo que haja cãibras, mesmo que o corpo sangre. Acho que isso faz parte. Não sou contra o embrutecimento. Estou me colocando aqui contra ultrapassar o próprio limite. E, ao meu ver, certas reações do corpo mostram q o limite foi ultrapassado.

    Mais um argumento que posso usar é que, se alguém que se propõe a desafiar o seu corpo e arruma uma tendinite, desmaia, perde orientação espacial, adquire uma bursite ou outra lesão, é porque a sua mente quer algo q o corpo ainda não está pronto para dar. Na minha opinião, isso é um indício de que mente e corpo não estão em plena sintonia. A mente quer e propõe, mas o corpo não suporta. Não ainda. Deveria se treinar mais e permitir q o corpo fosse se adaptando aos poucos, respeitando seus limites.
    O que estou tentando dizer é:
    “Não ultrapasse seus limites. Prefira ampliá-los.”

    Espero q eu tenha conseguido me expressar bem.

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